Em “Lady Tempestade,” Andrea Beltrão resgata outra advogada que lutou contra a ditadura

Enquanto o Brasil descobre o papel de Eunice Paiva (1929-2018) com o sucesso de Ainda Estou Aqui, outra personagem da luta contra a ditadura vem à tona. 
A também advogada e pernambucana Mércia Albuquerque (1934-2003) defendeu centenas de presos políticos na década de 1970, e sua história é revelada em Lady Tempestade, um espetáculo com Andrea Beltrão que acaba de voltar aos palcos.

Dirigido por Yara de Novaes, o monólogo realizou sessões esgotadas nos dois primeiros meses de 2024 e agora voltou ao Teatro Poeira, no Rio. Desta vez, a previsão é de quatro meses em cartaz para depois chegar a São Paulo e viajar por outras capitais, começando pelo Nordeste.    
No texto da dramaturga Silvia Gomez, Andrea interpreta a personagem A., que recebe em casa os diários de Mércia e discute com a plateia o que fazer depois de ler os testemunhos sobre a busca pelo paradeiro de desaparecidos. 
“Existe um interesse enorme no silêncio e esse silêncio só interessa aos culpados,” diz a atriz, indicada ao Prêmio Shell de melhor do ano, assim como a diretora e a dramaturga. “Às vezes evitamos tocar em assuntos duros demais, mas não podemos esquecer de que, se não olharmos para o passado, fica difícil ter um futuro melhor.”
Na metade de 2023, Andrea conheceu as narrativas de Mércia através da diretora Yara de Novaes, com quem conversava há algum tempo para criar uma parceria. Yara descobriu a história da advogada quando participou como atriz do filme Zé, dirigido por Rafael Conde, sobre a vida do líder estudantil José Carlos Novaes da Mata Machado (1946-1973), morto no regime militar. “Na época, fiquei claudicante porque tinha acabado de fazer Antígona e queria navegar por outros mares,” diz a protagonista.
A tragédia Antígona, escrita por Sófocles há 2.500 anos, rendeu um solo dirigido por Amir Haddad que estreou em 2016 e foi apresentado até o começo de 2023. Em desempenho premiado, Andrea viveu a personagem-título, que enfrenta a tirania de seu tio Creonte, o Rei de Tebas, para garantir o direito de enterrar o irmão, Polinice, assassinado por desacatar o sistema. 
“Mas foi só eu ler os textos para entender que a gente precisava falar de Mércia,” diz. “Tem um trecho de ‘Lady Tempestade’ que me toca muito e é quando digo ‘você concorda que alguém seja retirado de casa e fique desaparecido, você concorda que uma família passe por isso?’”
Andrea, entretanto, garante que jamais levanta um espetáculo com a pretensão de que ele seja necessário ou transformador. “O teatro não aceita tamanha carga” diz. 
Com a experiência de produtora e empresária – ela é sócia de Marieta Severo no Teatro Poeira, espaço que construíram e mantêm com recursos próprios há 20 anos – evita discursos panfletários e aposta no encantamento de um bom trabalho para conquistar a plateia. 
“Pode ser o tema mais barra-pesada, mas alguma manobra artística deve ser feita na hora de entregá-lo ao público. Mesmo as peças mais políticas do [dramaturgo alemão Bertolt] Brecht são carregadas de beleza.” 
Ser dona de um teatro não facilita tanto para a atriz a manutenção de Lady Tempestade, que volta sem patrocínio algum. “Eu pago todas as contas do Poeira e, mesmo em uma montagem de que faço parte, tenho as despesas de qualquer produtor que alugue o espaço”, garante. “Não sei se o público vai ter interesse pelas histórias que quero contar, mas, caso saia no prejuízo, tudo bem, faço um papagaio no banco e todos recebem direito.”
Como aposta para cativar os espectadores, Andrea acredita que, apesar da aridez do assunto, Mércia é uma personagem solar, daquelas que transformam a própria vida e a dos outros. 
Neste ponto, a artista encontra afinidades da advogada com a destemida sertaneja Zefa Leonel, papel dela na novela No Rancho Fundo, exibida pela Globo até o começo de novembro. “Zefa é a mulher que gostaria de ser, prima distante da Mércia, corajosa, forte, tanto que interrompi a temporada da peça por causa das gravações porque sabia que seria um trabalho especial.”
Assim como Antígona, que gerou o livro Antígona: Ela Está Entre Nós e o filme Antígona 442 A.C., Lady Tempestade chegará ao formato audiovisual sob a direção do mesmo Maurício Farias, marido da atriz. “A diferença é que agora teremos uma equipe grande, com, entre outros, o diretor de fotografia Chico Rufino e a diretora de arte Luciane Nicolino. Filmamos Antígona na pandemia e éramos só quatro pessoas trancadas no Poeira testando covid todos os dias.”
Aos 61 anos, Andrea fala com entusiasmo do prazer de promover o diálogo dos espetáculos com outras linguagens. É uma forma de se renovar constantemente numa carreira que já fez 45 anos, 40 deles vinculados à Globo, empresa da qual não é mais funcionária desde novembro. 
“Eu sempre coloquei um pé nos grandes empreendimentos para de vez em quando realizar projetos fora da curva, e continuará sendo desse jeito”, diz. “O Teatro Poeira é a maior prova disso, e sei que sem ele nós não seríamos tão felizes.”
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